A audiência de custódia como contenção à violência policial em desfavor da pessoa presa

Autor: Guilherme Silva Araujo

Publicado no site www.emporiododireito.com.br


Introdução

É crescente a voz no universo jurídico brasileiro que pugna pela implantação das audiências de custódia nos procedimentos penais. Tal iniciativa, que já havia sido tomada no parlamento brasileiro através do PLS nº 554/2011 ganha força mediante a atuação do CNJ, que em fevereiro de 2015, em parceria com o Ministério da Justiça e o TJSP, lançou o projeto para implantar Audiência de Custódia mesmo sem haver a previsão legal na legislação brasileira, fundamentando a iniciativa no Artigo 7º da Convenção Americana Sobre Direitos Humanos (Pacto de San Jose da Costa Rica).

Neste norte, são inúmeros os argumentos utilizados pelo estado para justificar a importância da Audiência de Custódia, dentre eles a análise de real necessidade de acautelamento provisório, bem como o exercício do contraditório pleno e ainda a facilitação no processo de apuração de eventuais práticas de torturas, sendo este último o enfoque do presente escrito.

Além dos motivos demonstrados acima, há de se destacar ainda a desoneração do erário com a criação de critérios mais rigorosos para o encarceramento provisório, que deverão ser analisados por ocasião da audiência de custódia.

Assim, apresentados os motivos principais que fundamentam a necessidade da audiência de custódia, abordar-se-á de maneira específica a proteção aos direitos humanos da pessoa conduzida pela autoridade policial por ocasião do crivo realizado pelo magistrado no prazo de 24 horas após a prisão.

Se propõe tal análise realizando um paralelo com a atual situação brasileira no que diz respeito às denúncias de violência policial, estabelecendo assim uma crítica ao modus operandi violento que foi institucionalizado pelas forças de Segurança Pública no Brasil, em especial no que diz respeito à população vulnerável e não branca.

A violência policial como forma de vingança contra um inimigo imaginário.

O ponto nuclear que se pretende dar atenção na presente análise critica é a pessoa humana, conduzida presa pela ocorrência em tese de um descumprimento da norma penal.

O que parece passar despercebido pelas forças policiais, quando motivadas por certa sede de vingança popular é que o conduzido em estado de flagrância ainda não possui uma sentença transitada e julgada, portanto ainda inocente, podendo ser ao final do processo absolvido.

Ademais, mesmo que se considere a condenação sumária antes mesmo do devido processo legal, não é legítima qualquer espécie de punição física ou mental diversa das penas previstas no Código Penal.

Necessário mencionar, que a violência policial cometida contra a pessoa humana conduzida em estado de flagrância é legitimada e incentivada pela grande massa que por sua vez alienada e incentivada pela chamada indústria do medo, imagina estar na violência o estado pedagógico mágico para que a pessoa em estado de não obediência á normas penais passe a agir adequadamente em sociedade. Ledo engano.

Neste sentido, é proposto pela mídia um maniqueísmo onde se etiqueta quem é bom e ruim, criando uma sensação envaidecedora por parte da classe dominante que se entende como cumpridora de direitos e deveres fazendo-lhes crer que aqueles que descumprem as normas do pacto social são inimigos sociais e por isso devem ser despidas de qualquer garantia fundamental.

Este pensamento, em que pese pairar de maneira esmagadora fora do ambiente acadêmico e na mídia sensacionalista também é reproduzido por certas produções científicas.

Neste sentido, é este o pensar de Jakobs (2003) que dá combustível à uma ótica punitivista:

“[…] quem por princípio se conduz de modo desviado, não oferece garantia de um comportamento pessoal. Por isso, não pode ser tratado como cidadão, mas deve ser combatido como inimigo. Esta guerra tem lugar com um legítimo direito dos cidadãos, em seu direito á segurança; mas diferentemente da pena, não é Direito também a respeito daquele que é apenado; ao contrário, o inimigo é excluído.”

Neste mesmo caminho se posiciona Fichte (1762-1814) citado na obra de Jakobs (2008), afirmando que “quem abandona o contrato cidadão em um ponto em que no contrato se contava com sua prudência, seja de modo voluntário ou por imprevisão, perde todos os seus direitos como cidadão e como ser humano, e passa a estar em um estado de ausência completa de direitos”.

Este modo de ver o direito criminal, sob a ótica do inimigo caminha no sentido de que o infrator, sabedor de seus direitos e deveres, ao descumprir a legislação penal vigente está apto a sofrer as mais cruéis imposições estatais, como alguém que delinquiu por livre e espontânea opção tornando-se assim alguém a ser combatido.

Neste sentido, tal ambição punitiva reflete em números na atuação policial do Brasil, que revestida desta sede de defender uma classe que se imagina ser “do bem” acaba por ultrapassar os limites da mera atuação preventiva, passando a valer-se do poder estatal para de maneira autoritária castigar a integridade física daqueles vistos como adversários na fantasiosa guerra entre o bem e o mal.

Segundo a entidade Human Rights Watch (HRW)[1] entre janeiro de 2012 e junho de 2014, sua central de ouvidoria recebeu 5.431 denúncias de tortura, crueldade, desrespeito ou tratamento degradante advindas do Brasil, o que equivale a cerca de 181 reclamações por mês.

Dentre tais números, o que chama atenção é que 84% dos episódios denunciados se tratam de pessoas sob a custódia do estado, ou seja, são maltratados por aquele ente que em tese deveria buscar a garantia de seus direitos.

Necessário ressaltar que estes são apenas os números que chegam até a entidade, desconsiderando-se assim todos os episódios de violência policial que sequer são noticiados à qualquer órgão, seja ele estatal ou não.

Tal violência institucionalizada pelas forças de segurança faz pairar sobre a sociedade brasileira o medo de ser abordado e sofrer com práticas de tortura, conforme pesquisa realizada em 21 países pela ONG Anistia Internacional[2]. Tal pesquisa questionou aos seus cidadãos se havia sensação de segurança em eventual detenção. Para espanto dos pesquisadores, no Brasil 80% dos entrevistados revelarem que possuem medo de serem vítimas de alguma violência em meio à abordagem policial.

Tal índice fez Érika Rosas, diretora para as Américas da Anistia Internacional, concluir que “É um índice chocante que revela a percepção social em torno da tortura”.

Par se ter uma ideia, o Brasil ficou na frente de países como México e Paquistão, que apresentam situações sociais alarmantes no que diz respeito à violência.

Neste trilho, frente a tal preocupante situação, é que se saúda a iniciativa da implantação da audiência de custódia que poderá servir com um impedimento aos maus tratos dos conduzidos, tendo em vista o célere contato com um magistrado.

Audiência de custódia como mecanismo de redução à violência policial

Com base no contexto exposto acima resta indubitável que o Brasil está longe de possuir forças de segurança integralizadas e em harmonia com a sociedade, caminhando inclusive no sentido contrário, demonstrando ter uma polícia violenta, despreparada e altamente militarizada.

No que diz respeito à violência policial da pessoa conduzida, fator crucial para que não haja um efetivo combate e repressão se dá pelo fato de que a vítima, na maioria das vezes pessoa vulnerável, de parcas situações financeiras, estereotipada, com larga carreira no crime opta por não tomar qualquer iniciativa de noticiar as agressões às autoridades.

Ademais, o torturado opta por se manter silente frente ao medo de represálias que partem do estado, pelo simples fato de que o “homem da lei” representa força, poder e intimação para com aquele cidadão abandonado em todos os aspectos sociais.

Além do fator medo, é de se destacar que na atual sistemática prevista no Parágrafo 1º do Artigo 306 do Código de Processo Penal, o auto de prisão em flagrante deverá ser encaminhado para o Juiz em 24 horas, sendo o preso após as formalidades na delegacia de polícia conduzido diretamente ao sistema carcerário, sem ter qualquer contato com o Magistrado ou o Promotor de Justiça, e em muitos casos sequer um Advogado.

Neste contexto, o preso, em especial o hipossuficiente entra no sistema prisional e se coloca a aguardar a atuação de um Defensor Público ou de um Defensor Dativo nomeado, que levará mediante petições os fatos e fundamentos de defesa ao juiz competente ou ao tribunal.

Ocorre que o real contato do preso com o magistrado só irá ocorrer por ocasião da audiência de instrução e julgamento, que dependendo da complexidade do caso poderá acontecer meses após a prisão.

Passado todo este lapso temporal, já não existirão mais vestígios de lesões, e nem mesmo a intenção do preso de noticiar suas agressões, uma vez que sequer haverá lembrança de qual o agente estatal que lhe agrediu.

A realização da audiência logo após a flagrância poderá servir de oportunidade para que o preso, torturado, ou agredido fisicamente ou psicologicamente possa relatar os fatos ao magistrado, servindo como uma espécie de notícia crime, onde o ministério público de pronto poderá ser acionado para apurar os fatos.

Ao nosso ver, a ausência de responsabilização inerente as práticas de violência policial em desfavor da pessoa presa não se dá apenas pela inércia dos órgãos de investigação, mas sim, conforme mencionado acima pela dificuldade que existe de que os fatos chegam ao conhecimento do estado.

É neste pensar, que elegemos a audiência de custódia como um importante mecanismo de proteção aos direitos humanos da pessoa conduzida pela autoridade policial, na medida em que que criará a possibilidade do judiciário ser informado prontamente sobre eventuais casos de tortura ou agressão.

Notas e Referências:

[1] Fonte: http://g1.globo.com/politica/noticia/2015/01/ong-diz-que-tortura-por-parte-de-agentes-publicos-permanece-no-brasil.html

[2] Fonte: http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2014/05/140512_brasil_tortura_vale_rb

BRASIL. Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941.: Código de Processo Penal Brasileiro, Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689.htm>. Acesso em: 26 ago. 2015.

______. Senado Federal. Projeto de Lei do Senado PLS 554/2011. Altera Altera o § 1º do art. 306 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), para determinar o prazo de vinte e quatro horas para a apresentação do preso à autoridade judicial, após efetivada sua prisão em flagrante. Disponível em:< http://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/102115> .Acesso em: 27 de ago. 2015.. Texto Original.

Organização dos Estados Americanos, Convenção Americana de Direitos Humanos (“Pacto de San José de Costa Rica”), 1969.

JAKOBS, Gunther; MÉLIA, Manuel Cancio. Direito penal do inimigo: noções e críticas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, Organização e Tradução: André Luís Callegari e Mereu José Giacomolli, 2005; versão em espanhol: Derecho penal Del enemigo, Madri: Civitas, 2003.

______, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo: Noções e Críticas. Porto Alegre: 2008. p. 25-26

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